quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Savages: discípulas do pós-punk oitentista


Quando se fala em post-punk revival, logo me vêm a cabeça nomes como Strokes e Franz Ferdinand, ambas bandas que nunca me inspiraram muito interesse. Apesar de apreciar os grupos que eles se propõem a homenagear, o som não passa de algo divertido - e, quanto ao Strokes, irritante - e legal, digamos assim. Qual foi minha surpresa quando me deparei com as Savages, quatro garotas britânicas que andam causando certo estardalhaço com seu recente álbum, "Silence Yourself". A minha simpatia pelo som foi quase instantânea, por motivos que listarei a seguir. Mas, antes, vamos aos fatos.

A história do quarteto feminino começou no final de 2011, o que caracteriza uma repercussão relativamente rápida. O embrião do projeto nasceu quando a vocalista francesa Jehnny Beth - cujo nome real é Camille Bethomier - e a guitarrista Gemma Thompson se conheceram. Um ano de planos, composições e ideias depois, mais duas instrumentistas se juntaram à dupla. O primeiro show aconteceu em Janeiro do ano passado, e o reconhecimento passou a acontecer quando o primeiro single, Husbands, foi lançado. Segundo o The Guardian, a faixa condensa os melhores momentos do P.I.L, Joy Division, Siouxsie & The Banshees e similares.


E é exatamente isso. É perceptível a influência do P.I.L nos riffs de guitarra que parecem gritos, bem como a do Joy Division - Jehnny Beth lembra o finado Ian Curtis até na aparência. Arriscaria, aliás, a dizer que a banda originalmente batizada como Warsaw é a maior referência para essas garotas. O clima claustrofóbico, o baixo forte, está tudo ali. Tempere isso com uma dose cavalar de energia e temos uma das surpresas do presente ano.

O debut só serviu para consolidar o sucesso das Savages entre o público e a crítica, e rendeu a elas indicações para duas das premiações mais importantes da música inglesa, a BBC Sound of 2013 e a Barclaycard Mercury Prize. Não é para menos: o álbum é uma coleção de canções potentes, energéticas e, sobretudo, criativas. Sim, criativas. Não deixe o "revival" te enganar. Nada aqui é uma cópia descarada do que já foi feito antes, mas uma revisita a isso para originar uma sonoridade direta e reta. Nas próprias palavras do quarteto, "as músicas das Savages visam nos relembrar que os seres humanos não evoluíram tanto, que a música ainda pode ser direta ao ponto, eficiente e excitante". 

Contudo, o bicho pega mesmo é ao vivo. No palco cada composição soa mais convincente e as influências mais barulhentas afloram. Tudo é amplificado para dar forma a uma barreira sonora que alterna entre o viajante e o sônico. Os vocais de Beth, em conjunto com sua presença de palco, são um destaque a parte. Fay Milton, a baterista, também merece nota por espancar as peles com uma vontade que impressiona.


Usando referências predominantemente pós-punk, as Savages conceberam um registro digno de muita atenção. É música feita com garra, competência e um descompromisso que faz toda a diferença. Estávamos precisando disso, afinal.

Baixe aqui.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Hasteando a bandeira preta - parte II

Continuando...

O próximo passo foi recrutar um novo baixista, uma vez que o próprio Ginn assumira o baixo em "My War". Eles chegaram, então, à linda Kira Roessler que, indiscutivelmente, foi a melhor escolha para o posto. Seu estilo de tocar era ao mesmo tempo raivoso e sofisticado, tudo o que Ginn estava a procura. O ânimo era tão grande que, depois da entrada de Kira, a banda apresentaria seu período mais prolífico: foram três lançamentos só em 1984.

Da esquerda para a direita: Greg Ginn, Henry Rollins, Kira Roessler e Bill Stevenson

O álbum mais experimental que o Black Flag já lançou veio depois de "My War". "Family Man" possuía um lado apenas com Rollins e seus spoken-words, e um lado totalmente instrumental. Nem é preciso dizer que os fãs mais antigos não entenderam absolutamente nada, o que foi decisivo para que a obra só fosse apreciada muito tempo depois. Logo em seguida, vem o ótimo "Slip It In", uma continuação mais amadurecida do que eles vinham mostrando até então. As críticas foram muitas, os fãs mais ardorosos chegavam a agredir o frontman Rollins, mas o Black Flag seguia experimentando e ficando ainda mais pesado.

A fúria do público do Black Flag se dava não apenas por causa do direcionamento adotado por eles, mas também pela escassez de velhos clássicos nos setlists, fato comprovado pelo próprio Henry Rollins. Essa atitude se refletiu até mesmo na opinião de alguns críticos, que afirmaram que "Slip It In" cruzava a linha entre o punk e o metal. Mas, ao que tudo indica, isso não foi o bastante para eles, e, em 1985, todos são surpreendidos ainda mais com "Loose Nut", um álbum que pendia para o metal em vários momentos.

Um aspecto memorável de "Loose Nut" é sua produção, a primeira sem a mão de Spot. A polidez não deixa de ser estranha para os moldes da banda, que sempre apostou em um trabalho sujo e orgânico. E, apesar de não ter sido sucesso entre críticos e nem mesmo ser apreciado pela banda, não deixa de ser um bom disco. A queda no padrão de qualidade pode ser explicada pelos constantes conflitos internos, os quais permaneceriam até o fim do Black Flag, em 1986.


Mas, antes disso acontecer, é lançado o EP "The Process of Weeding Out", o auge do experimentalismo avant-garde de Greg Ginn. Rotular o disquinho não é uma tarefa muito fácil, mas eu diria que é algo entre o hardcore/sludge anterior e o free jazz. Diferentemente de "Family Man", não há participação de Henry Rollins, o que torna o álbum ainda mais difícil de digerir. No mínimo, interessante.

A saída de Roessler foi repentina, mas ajudou a conter as tensões por pelo menos um tempo. Stevenson também deixou de integrar o grupo, dando lugar a Anthony Martinez. Contudo, o Black Flag já estava dando os últimos passos para a derrocada. O excesso de turnês, os onipresentes confrontos internos e a dificuldade em manter um público - fato potencializado pela falta de um padrão sonoro - foram determinantes para que um ponto final fosse posto. O último trabalho de estúdio foi "In My Head", propositalmente semelhante a seu antecessor, numa tentativa quase desesperada de situar os fãs.

A última formação

O último show se deu em 27 de junho de 1986, em Detroit. Dois meses depois, o fundador Greg Ginn telefonou a Henry Rollins anunciando a saída de sua própria criação. E ficou claro que reformá-la estava fora de cogitação. Ainda haveria o EP "I Can See You", gravado em 1985 e lançado em 1989. Após isso, Ginn formaria o Gone e embarcaria em uma carreira solo. Henry Rollins permanece como a figura mais publicamente vista, atuando em filmes, lançando discos solo e com a Rollins Band, escrevendo livros e viajando o mundo com sua performance spoken word. 

Recentemente, o nome Black Flag voltou à mídia com a formação do Flag, banda composta por Keith Morris, Dez Cadena, Chuck Dukowski, Bill Stevenson e Stephen Egerton (Descendents). Quase simultaneamente, Ginn anunciou a reforma de seu projeto, ao lado de Ron Reyes e do baterista Dave Klein. No dia 2 de agosto do presente ano, o guitarrista acusou os membros do Flag de infringimento de direitos autorais. O veredicto foi que o Flag poderia continuar usando o icônico logo, uma vez que os fãs poderiam diferenciar as duas bandas. Processos à parte, acredito que o Flag tenha mostrado o melhor serviço até agora.

É isso. Espero que tenham apreciado essa verdadeira viagem pelo mundo do Black Flag e do underground californiano, duas coisas que se confundem facilmente. Peço desculpas se o texto ficou excessivamente grande ou detalhado, é minha primeira tentativa nesse formato e espero melhorar com o tempo. Abraço!

Hasteando a bandeira preta - parte I


Ao mesmo tempo que o punk rock tomava forma em Nova York, uma outra maneira de fazer música raivosa e revolucionária se desenvolvia no litoral californiano. O hardcore punk, como denuncia o nome, tinha origens diretas no punk rock dos Ramones e do Clash, mas seu núcleo era a cidade de Los Angeles e arredores, além de ser muito mais anticomercial e veloz que o gênero originado e popularizado pelos novaiorquinos. E um dos maiores nomes do gênero surgiu já em 1976, inicialmente sob o nome de Panic.

Fundada pelo guitarrista Greg Ginn e o vocalista Keith Morris, a banda tinha uma ética de trabalho muito mais séria do que grande parte de seus contemporâneos. Ginn, com espírito de liderança desde sempre, insistia para que ocorressem ensaios regularmente. A formação era completada pelo baixista Chuck Dukowski, ex-Würm, e pelo baterista Brian Migdol. Raymond Pettibon, irmão de Ginn, chegou a ser baixista por algum tempo, mas abandonou a ideia para se dedicar aos estudos.

O primeiro show do quarteto estabilizado foi no final de 1977, em Redondo Beach. Logo em seguida, tiveram a necessidade de trocar de nome para evitar confusões com outra banda da região; o escolhido foi Black Flag, sugestão de Pettibon. Foi nesse mesmo período que Dez Cadena viu o grupo ao vivo pela primeira vez. Anos depois, ele viria a integrar uma de suas várias formações.

Foto com o insano Keith Morris

A partir desse momento, Pettibon passou a criar vários desenhos para tudo que fosse relacionado à banda do irmão, desde o icônico logo até a capa de álbuns. Outro acontecimento importantíssimo se deu em 1978, ano em que eles deixam registrado o primeiro trabalho oficial do Black Flag: um EP nomeado "Nervous Breakdown".

Sendo a primeira e última gravação com Keith Morris, o vocalista original, o EP composto por apenas quatro faixas é de uma urgência nunca vista antes na época. Desse primitivo registro, saíram os clássicos imortais Nervous Breakdown, Fix Me e Wasted, referência para o mundo do hardcore e para gerações posteriores. Morris sairia um ano depois, alegando não aguentar mais as pirações de Ginn, que, àquela altura, estava totalmente viciado em cocaína. Esse é o fim da primeira fase do Black Flag. 


Enquanto Morris estava trabalhando na formação de uma nova banda - o essencial Circle Jerks -, Ginn tratou de recrutar um novo membro para o microfone. Quem assumiu o posto foi Ron Reyes, um fã. Também havia um novo baterista, o enigmático colombiano Robo, e foi com essa formação que a banda apareceu no lendário documentário de Penelophe Spheeris, "The Decline of Western Civilization". Isso só ajudou a reputação do Black Flag como algo sem precedentes na história do rock'n'roll aumentar. Contudo, as mudanças na formação ainda eram um problema: Reyes foi expulso da banda após abandonar o palco no meio de uma apresentação, e quem o substitui é Dez Cadena, o espectador dos primórdios do Black Flag.

A entrada de Cadena coincidiu com o pico de popularidade dos mesmos: eles embarcaram em uma turnê nacional, vendendo três mil ingressos em uma só noite no Santa Monica Civic Auditorium e conquistando problemas ainda maiores com a polícia, que invadia seus shows regularmente. Não é à toa que eles seriam objeto de ofensa em alguns clássicos posteriores do Black Flag.

Em 1981, chegou a vez de Dez Cadena abandonar o posto de vocalista. Sem um treinamento adequado, ele não suporta a demanda vocal da banda e troca o microfone pela guitarra. Aparece, então, Henry Garfield, vocalista da State of Alert e fã de Ginn e companheiros. Ele ficou conhecido como Henry Rollins tempos depois, e abriu algumas portas para o Black Flag, como ajudá-los na realização de seu primeiro show em Washington, D.C., além de, é claro, ter permanecido nos vocais até o fim da mesma.


Greg Ginn, Chuck Dukowski, Dez Cadena, Robo e o enérgico Henry Rollins a frente

Rollins trouxe uma característica mais séria a banda, que, inicialmente, fazia canções até mesmo descontraídas. Suas habilidades como poeta, no entanto, eram muito mais austeras e ajudaram na posterior mudança sonora do Black Flag. Foi com ele que o processo de lançamento de um full-length propriamente dito começou. 

As sessões de gravação de "Damaged" causaram conflitos entre a banda e o produtor Spot, o qual já havia gravado várias faixas componentes do disco com formações antigas e desaprovava a adição de um novo guitarrista. No entanto, o debut saiu, e mostrou o grupo mais competente do que nunca. Nele já havia o clima sombrio característico dos discos posteriores, com detalhe especial para Thirsty and Miserable, Depression, Damaged 1 e Damaged 2. A gravação, quase totalmente ao vivo, possui uma atmosfera lo-fi que faz toda a diferença; sinceramente, nunca ouvi um disco que soasse como soa "Damaged". Só ouvindo para saber.



Os problemas de verdade começaram quando a MCA, distribuidora do álbum, se recusou a colocá-lo nas prateleiras por ser um disco "anti-parental". Há, também, quem diga que a verdadeira razão para isso é que a subsidiária responsável pela distribuição, Unicorn Records, era tão mal administrada que não tinha fundos para arcar com as despesas. O resultado foi que o Black Flag foi impedido de usar o próprio nome até 1984.

Mas não foi isso que parou as atividades do quinteto. Em 1981, eles realizaram, junto ao Minutemen, sua primeira turnê europeia. Estava tudo indo muito bem quando, em pleno aeroporto, o visto de Robo é negado e ele é impossibilitado de voltar para a Califórnia. O substituto foi o ex-D.O.A Chuck Biscuits, que não permaneceu muito tempo no posto e deu lugar a Bill Stevenson, conhecido por tocar no Descendents. Robo voltaria à ativa em 1983, integrando o Misfits. E a criatividade de sua ex-banda estava alcançando picos inéditos.

O Black Flag não era o mesmo depois da última turnê, explosiva e violenta. Eles passaram a se interessar por coisas além do punk rock, como Grateful Dead e Jimi Hendrix Experience. Isso influiu e muito nas novas composições, registradas numa demo de 1982, extremamente desaceleradas e inconvencionais. Nessa época, Dez Cadena sai e o Black Flag prossegue com apenas uma guitarra. Um ano mais tarde, o demitido é Chuck Dukowski, que se transformou no administrador das turnês da banda.


A banda ao vivo já com Kira Roessler

Em 1983, é posta nas prateleiras a essencial coletânea "Everything Went Black", um apanhado das gravações do Black Flag com Keith Morris, Ron Reyes e Dez Cadena. O golpe de sorte veio com a falência da Unicorn, o que os libertou do impedimento e possibilitou que voltassem com toda força. Talvez isso explique a raiva transbordante de "My War", um álbum pesado, denso e claustrofóbico. Musicalmente, há influências do Black Sabbath aqui e acolá e, anos mais tarde, o disco seria classificado como um protótipo de sludge metal; e com razão.

- Na segunda parte, a entrada de Kira Roessler, o auge do experimentalisto de Greg Ginn, os conflituosos últimos anos e os acontecimentos atuais relacionados à banda. -