Lembro-me bem de como foi a sensação de ouvir Screamadelica, terceiro disco do Primal Scream. Estava eu folhando 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, um maravilhoso guia musical organizado por Robert Dimery, quando de repente algo me chamou a atenção. Uma capa extremamente icônica contendo um sol pintado a mão num estilo bem infantil saltou na direção dos meus olhos, causando-me uma curiosidade imensa de descobrir o que era aquilo. Deixando tudo ainda mais misterioso, não havia nada escrito nesta capa - algo que eu sempre adorei - e o disco se chamava Screamadelica, nome que parece definir algum estilo de música. Após toda essa cerimônia, consegui uma cópia do álbum com um amigo - que também conheceu o disco por sua capa - e fui logo ouvir . O choque foi grande.
Nos primeiros e icônicos acordes de violão de "Movin' On Up", tive a sensação de estar ouvindo qualquer disco lançado pelos Rolling Stones nos anos 70. Logo pensei que seria um disco vintage em pleno ano de 1991, e isso me animou. Porém, minhas expectativas foram frustadas. E tenho certeza que foi a melhor frustração que eu já ouvi na minha vida! Se 2001: Uma Odisseia No Espaço possui o maior corte da história do cinema, Scremadelica possui o maior corte da história da música. Do típico rock stoniano de abertura, o disco dá uma guinada extremamente radical em "Slip Inside This House". Samples, batidas eletrônicas, e muitos, mas muitos sons psicodélicos marcam esta guinada, e também todas as canções seguintes. E a cada canção que passava, o disco só crescia, vide as sensacionais "Don't Fight It, Feel It" (com seu marcante "som de grilo"), "Higher Than The Sun" e "Inner Flight".
Quando disco chegou na sexta faixa, ficou evidente que não era um álbum eletrônico convencional. "Come Together" é provavelmente o som gospel não-gospel mais ácido de todos os tempos, uma verdadeira "viagem" de dez minutos baseada em um órgão de igreja hipnotizante. Seria praticamente impossível superar esta canção, e o disco ainda estava na metade. Porém, o impossível, aconteceu. "Loaded" caiu como uma bomba, um tour de force carregado de metais, slide guitars, e uma linha melódica que remete o ouvinte direto para algum show apoteótico feito pelos Stones no passado. Sem dúvidas é o marco definitivo da junção de música eletrônica com rock and roll. O disco segue com "Damaged", pisando no freio quanto à psicodelia (trata-se de uma típica balada stoniana), mas logo retoma o clima clubber nas três faixas finais: "I'm Coming Down", a sublime "Higher Than The Sun - A Dub Symphony In Two Parts" e "Shine Like Stars".
O Primal Scream começou como uma banda de rock independente, praticamente desconhecida entre público e crítica, e com dois discos na bagagem. Em contrapartida, a sempre promissora Inglaterra estava dando sinais de uma nova cena underground que pouco se relacionava com o tradicional rock britânico. Era a cena clubber: festas guiadas por grupos de música eletrônica lisérgicos e regadas a psicotrópicos. Os grandes expoentes dessa cena eram o Stone Roses e o Happy Mondays. O Primal Scream não fazia parte desse mundo.
Foi a partir da metamorfose de "I'm Loosing More Than I'll Ever Have" - canção do repertório antigo do Primal Scream - em "Loaded" pelo DJ Andrew Weatherall que a mente criativa por trás da banda, Bobby Gillespie, teve a genial ideia de fazer um disco de acid house temperado com rock vintage. O resultado foi Screamadelica, um marco sem paralelos na história da música, que levou o house e a cultura clubber para todos os cantos do globo e mostrou que era possível fazer um som dançante e extremamente artístico ao mesmo tempo.