Produzido em 2013, o documentárioThe
punk singeré algo muito pertinente nos tempos
de FEMEN, Marcha das Vadias e derivados em que vivemos. Seu sujeito é Kathleen
Hanna, à primeira vista nada mais que um rostinho bonito arquetípico da década
de 1990. A aparência inofensiva esconde uma das maiores forças do feminismo no
rock’n’roll.
Atualmente, Kathleen se apresenta com o The
Julie Ruin. Antes disso, fez algum sucesso com o electropop do Le Tigre. Mas
ela cravou seu nome no circuito alternativo como vocalista do Bikini Kill,
banda formada em 1990 na cidade de Olympia, Washington. Os registros oficiais
são poucos – dois discos, um split, um EP e uma fita cassete –, a
representatividade é gigante.
Apesar da natureza subversiva, o punk rock
sempre foi marcado pela proeminência masculina. Tanto no palco quanto na
plateia os homens eram maioria e sua violência deliberada não era algo
exatamente atrativo para o sexo oposto. O Bikini Kill apareceu como um fenômeno
meteórico para quebrar todos esses paradigmas: era punk rock feito por garotas.
Em 7 anos de existência, Kathleen Hanna,
Kathi Wilcox, Tobi Vail e Billy Karren (o representante masculino no grupo)
lançaram as bases para o riot grrrl sem medo de serem julgadas, discriminadas
ou incompreendidas. E a insana energia de Kathleen foi essencial para que a
mensagem fosse devidamente passada.
No palco, geralmente de camiseta e calcinha,
a vocalista berrava letras sobre estupro, incesto e sexismo com tanta displicência
que chegou a despertar a ira de homens. As ameaças de morte e o sensacionalismo
da mídia em cima do riot grrrl na segunda metade dos anos 1990 causaram tantos
problemas ao Bikini Kill que, em 1997, elas abandonaram a cena e entraram para
a História.
Das escassas gravações que deixaram, o EP homônimo de 1992 é provavelmente a mais emblemática. Produzido por
Ian MacKaye, o disquinho é uma pedrada punk alucinante de 15 minutos em que as letras e a performance enérgica de Kathleen são os maiores destaques. Segue trecho de Suck
my left one:
"Daddy comes into her room at night He's got more than talking on his mind My sister pulls the covers down She reaches over, flicks on the light She says to him: SUCK MY LEFT ONE Mama says: 'You have to be polite, girl You have got to be polite Show a little respect for your father Wait until your father gets home' Fine, fine, fine..."
O Bikini Kill angariou
vários admiradores famosos, entre eles Joan Jett, Kurt Cobain, Kim Gordon e
Thurston Moore, mas sempre manteve sua atitude anti-mainstream. E
a ideologia do riot grrrl segue primordial nos dias de hoje, visto que a
igualdade entre sexos ainda é um ideal distante. Ouvir Bikini Kill é pelo menos
manter a centelha acesa.
WE’RE BIKINI KILL AND WE WANT
REVOLUTION: GIRL-STYLE NOW!!!
A resposta é simples, basta pensar na banda
punk que rendeu mais polêmica por onde passou: os Sex Pistols. Quando os
ingleses apareceram, avacalhando com os bons costumes de sua terra numa atitude
contestadora e iconoclasta emprestada dos nova-iorquinos, o clima nos bastidores
do movimento já era tenso; a última coisa de que precisavam era a atenção massiva
da mídia. A morte do emblemático Sid Vicious e o misterioso assassinato de sua namorada Nancy Spungen meses antes só serviram para jogar as últimas pás de terra no
caixão punk. Portanto, na virada de 1978 para 1979 a efervescência cultural nos becos de Nova York
já não era mais a mesma.
Brian Eno
Quando Brian Eno foi para a metrópole em
1978, ele não estava à procura da próxima grande tendência urbana.
Na verdade, ele só viajou até lá a fim de masterizar o segundo álbum do Talking
Heads. Mas, num despretensioso festival de bandas underground, acabou testemunhando outra manifestação até mais drástica que o finado punk e igualmente digna de
atenção.
Durante o festival, Eno presenciou o grito selvagem de pessoas que vinham fazendo barulho desde o
auge punk – Mars, Contortions e Teenage Jesus & The Jerks – e outras que
acabavam de adentrar a contracultura – caso do DNA. Independente disso, as
quatro bandas tinham algo em comum: a transbordante abstração. Nenhuma delas sabia o que queria fazer, tampouco dominava seus instrumentos, mas quem se importava? Elas estavam
fazendo alguma coisa. E não há nada mais punk que isso.
O artista, que àquela altura já tinha Robert Fripp e David Bowie no currículo, ficou impressionado com o que viu e ouviu e não teve dúvidas na hora de convidar os quatro grupos para a gravação de um
álbum conjunto. Logo, na primavera de 1978, praticamente ao vivo em estúdio, foi registrado o
manifesto mais conhecido da chamada no wave:
A coletânea saiu pela Antilles Records e não
chegou sequer a conquistar um lugar modesto na Billboard. Os críticos se
dividiram: uns gostaram, outros odiaram e outros, ainda, não entenderam absolutamente nada. Relançamentos? Só no Japão e na Rússia, décadas depois da primeira prensagem. Mas a influência do material
ultrapassou essa inacessibilidade.
Inacessibilidade, aliás, é a palavra de
ordem. Mesmo assim o disco guarda seus momentos um pouco mais palatáveis nas
canções do Contortions, que abre os trabalhos, e nas do DNA, última banda do lado B.
O Contortions tem como fio condutor o
saxofone e os vocais de seu líder, o maníaco James Chance, que usa o resto da
banda como base para experimentações free jazz e berros ininteligíveis.
Mas, guardadas as devidas proporções, a amálgama de jazz, funk e cacofonia
chega a ser dançante. A prova maior está em I can’t stand myself,
esquizofrênico cover de James Brown. Há ecos do punk rock no DNA e, em Not moving, por exemplo, surge uma espécie de
refrão. A presença do órgão é outro diferencial do grupo, mas o destaque vai
para as palhetadas espasmódicas de Arto Lindsay, também um vocalista notável.
Os momentos mais intrigantes de “No New
York” estão nos dois nomes intermediários: Teenage Jesus & The Jerks
(sensacional!) e Mars.
A primeira tem Lydia Lunch, a personalidade
mais conhecida da no wave, na guitarra e nos vocais. O som é minimalista até o
osso: “riffs”, bateria tribal e vocalizações desesperadas que resultam num
clima claustrofóbico e atingem seu auge em The closet. E então vem o
Mars, que consegue superar todos os padrões de estranheza da coletânea sem economizar nos ruídos ensurdecedores ou nos murmúrios incompreensíveis que permeiam as faixas. Tunnel, genuíno caos anti-musical, é o maior
comprovante da proeza.
Com a mãozinha de Brian Eno, era oficial: a
no wave, trocadilho infame com new wave, existia e ia muito bem.
Só que havia outro personagem primordial além dos documentados em 1978...
Glenn Branca começou sua carreira artística em
1975 como, digamos assim, um dramaturgo alternativo ao fundar o grupo teatral
Bastard Theatre em Boston. As boas avaliações de suas peças o motivaram a ir para
Nova York continuar experimentando, mas assim que ele entrou em contato com aquela cena em ebulição, trocou as performances teatrais pelo instrumento que
tocava desde os 15 anos, a guitarra.
Suas primeiras bandas foram as breves
Static e Theoretical Girls. Com elas, Branca começou
a dar forma ao seu estilo nada ortodoxo de tocar guitarra mesclando afinações alternativas, repetições e séries harmônicas, tudo no volume máximo. À certa altura ele começou a
procurar mais guitarristas para compor sua orquestra e em 1980 estreou o primeiro sexteto – quatro guitarras, baixo e bateria – no EP “Lesson No. 1”. Hoje considerado uma obra essencial da no wave, o debut de duas faixas abriu alas para a entrada de Lee Ranaldo e o começo da composição do trabalho definitivo de Branca:
Uma linha de baixo penetrante, tons e caixa
em sintonia e então – !!! – uma parede sonora tão ensurdecedora quanto cacos de
vidro furando os tímpanos formada por quatro guitarras em comunhão ritualística. Lesson No. 2 abre “The Ascension”
criando um clima opressor e onipresente.
O nome foi inspirado no homônimo disco de
John Coltrane, um marco do free jazz, e a configuração da banda lembra a
divisão entre sax barítono, alto, tenor e soprano. No texto da reedição de 2003,
Lee Ranaldo confirma a analogia. Não por acaso, posteriormente Branca passou a
batizar suas composições como sinfonias.
E faz todo o sentido. O entrosamento
completo entre os guitarristas, cada um criando uma base diferente até todas
entrarem em uníssono, é comparável ao trabalho de uma orquestra de tamanho
reduzido. Glenn é o bandleader, o maestro que faz a orquestra ir do
caótico ao melódico sutilmente.
As cinco peças instrumentais soam como uma busca pela ascensão, e quando a derradeira faixa-título finalmente chega a um terreno acima de nós, acaba sem delongas e
deixa o ouvinte arfando por mais. Por essas e por outras, “The Ascension”
transcendeu a no wave e o rock’n’roll e tem um lugar só seu na História da
música.
Glenn Branca e seus discípulos. Detalhe para os dois primeiros da esquerda para a direita.KOOL THING!
E
depois?
Ao contrário do punk, a no wave
não se transformou num fenômeno cultural badalado, muito menos teve um fim definido. Mas o
termo não caiu em desuso e permeia a música alternativa até os dias de hoje. O Sonic
Youth, exemplo mais conhecido da influência do movimento, criou-se no
underground novaiorquino e era classificado como no wave nos primórdios.
A importância da obra de Glenn Branca para a dupla Thurston Moore e Lee Ranaldo
é inestimável e facilmente perceptível. Alguns nomes do pós-punk, como Public
Image Ltd. e Swans, também usaram a experimentação indiscriminada como
referência.
Quanto aos no-wavers originais,
alguns desapareceram no submundo e outros conseguiram manter a relevância. É o
caso de Lydia Lunch, dona de uma vasta discografia e carreira respeitável como
fotógrafa, poeta e atriz. O Contortions faz shows esporádicos e chegou a vir a São Paulo capital em 2013. Glenn Branca, o artista mais
consagrado a sair da cena, segue escrevendo peças, tanto para guitarras quanto
para orquestras convencionais, e é endeusado na Europa.
Mais recentemente, saiu no
exterior o livro “No wave: post-punk. Underground. New York. 1976-1980”,
escrito por Thurston Moore e Byron Coley, que me parece muito interessante e dificilmente será publicado por aqui. Diversas coletâneas abordando grupos
ainda mais obscuros surgem ocasionalmente, bem como documentários, sendo a
produção “Kill Your Idols” a mais citada.
Para terminar, uma frase de
Lydia Lunch que explica e sintetiza o espírito desordeiro da no wave: “The whole
fucking country was nihilistic. What did we come out of? The lie of the Summer
of Love into Charles Manson and the Vietnam War. Where is the positivity?”. Perfeito. É isso aí.