domingo, 22 de março de 2015

GIRL STYLE NOW!!!


Produzido em 2013, o documentário The punk singer é algo muito pertinente nos tempos de FEMEN, Marcha das Vadias e derivados em que vivemos. Seu sujeito é Kathleen Hanna, à primeira vista nada mais que um rostinho bonito arquetípico da década de 1990. A aparência inofensiva esconde uma das maiores forças do feminismo no rock’n’roll.

Atualmente, Kathleen se apresenta com o The Julie Ruin. Antes disso, fez algum sucesso com o electropop do Le Tigre. Mas ela cravou seu nome no circuito alternativo como vocalista do Bikini Kill, banda formada em 1990 na cidade de Olympia, Washington. Os registros oficiais são poucos – dois discos, um split, um EP e uma fita cassete –, a representatividade é gigante.

Apesar da natureza subversiva, o punk rock sempre foi marcado pela proeminência masculina. Tanto no palco quanto na plateia os homens eram maioria e sua violência deliberada não era algo exatamente atrativo para o sexo oposto. O Bikini Kill apareceu como um fenômeno meteórico para quebrar todos esses paradigmas: era punk rock feito por garotas.


Em 7 anos de existência, Kathleen Hanna, Kathi Wilcox, Tobi Vail e Billy Karren (o representante masculino no grupo) lançaram as bases para o riot grrrl sem medo de serem julgadas, discriminadas ou incompreendidas. E a insana energia de Kathleen foi essencial para que a mensagem fosse devidamente passada.

No palco, geralmente de camiseta e calcinha, a vocalista berrava letras sobre estupro, incesto e sexismo com tanta displicência que chegou a despertar a ira de homens. As ameaças de morte e o sensacionalismo da mídia em cima do riot grrrl na segunda metade dos anos 1990 causaram tantos problemas ao Bikini Kill que, em 1997, elas abandonaram a cena e entraram para a História.

Das escassas gravações que deixaram, o EP homônimo de 1992 é provavelmente a mais emblemática. Produzido por Ian MacKaye, o disquinho é uma pedrada punk alucinante de 15 minutos em que as letras e a performance enérgica de Kathleen são os maiores destaques. Segue trecho de Suck my left one:

"Daddy comes into her room at night
He's got more than talking on his mind
My sister pulls the covers down
She reaches over, flicks on the light
She says to him: SUCK MY LEFT ONE

Mama says:
'You have to be polite, girl
You have got to be polite
Show a little respect for your father
Wait until your father gets home'
Fine, fine, fine..."

O Bikini Kill angariou vários admiradores famosos, entre eles Joan Jett, Kurt Cobain, Kim Gordon e Thurston Moore, mas sempre manteve sua atitude anti-mainstream. E a ideologia do riot grrrl segue primordial nos dias de hoje, visto que a igualdade entre sexos ainda é um ideal distante. Ouvir Bikini Kill é pelo menos manter a centelha acesa.

WE’RE BIKINI KILL AND WE WANT REVOLUTION: GIRL-STYLE NOW!!! 

O documentário:


segunda-feira, 2 de março de 2015

New wave? NO WAVE!


Quem matou o punk? Ou melhor, o que matou o punk?

A resposta é simples, basta pensar na banda punk que rendeu mais polêmica por onde passou: os Sex Pistols. Quando os ingleses apareceram, avacalhando com os bons costumes de sua terra numa atitude contestadora e iconoclasta emprestada dos nova-iorquinos, o clima nos bastidores do movimento já era tenso; a última coisa de que precisavam era a atenção massiva da mídia. A morte do emblemático Sid Vicious e o misterioso assassinato de sua namorada Nancy Spungen meses antes só serviram para jogar as últimas pás de terra no caixão punk. Portanto, na virada de 1978 para 1979 a efervescência cultural nos becos de Nova York já não era mais a mesma.

Brian Eno
Quando Brian Eno foi para a metrópole em 1978, ele não estava à procura da próxima grande tendência urbana. Na verdade, ele só viajou até lá a fim de masterizar o segundo álbum do Talking Heads. Mas, num despretensioso festival de bandas underground, acabou testemunhando outra manifestação até mais drástica que o finado punk e igualmente digna de atenção. 

Durante o festival, Eno presenciou o grito selvagem de pessoas que vinham fazendo barulho desde o auge punk – Mars, Contortions e Teenage Jesus & The Jerks – e outras que acabavam de adentrar a contracultura – caso do DNA. Independente disso, as quatro bandas tinham algo em comum: a transbordante abstração. Nenhuma delas sabia o que queria fazer, tampouco dominava seus instrumentos, mas quem se importava? Elas estavam fazendo alguma coisa. E não há nada mais punk que isso.

O artista, que àquela altura já tinha Robert Fripp e David Bowie no currículo, ficou impressionado com o que viu e ouviu e não teve dúvidas na hora de convidar os quatro grupos para a gravação de um álbum conjunto. Logo, na primavera de 1978, praticamente ao vivo em estúdio, foi registrado o manifesto mais conhecido da chamada no wave:


A coletânea saiu pela Antilles Records e não chegou sequer a conquistar um lugar modesto na Billboard. Os críticos se dividiram: uns gostaram, outros odiaram e outros, ainda, não entenderam absolutamente nada. Relançamentos? Só no Japão e na Rússia, décadas depois da primeira prensagem. Mas a influência do material ultrapassou essa inacessibilidade.

Inacessibilidade, aliás, é a palavra de ordem. Mesmo assim o disco guarda seus momentos um pouco mais palatáveis nas canções do Contortions, que abre os trabalhos, e nas do DNA, última banda do lado B.

O Contortions tem como fio condutor o saxofone e os vocais de seu líder, o maníaco James Chance, que usa o resto da banda como base para experimentações free jazz e berros ininteligíveis. Mas, guardadas as devidas proporções, a amálgama de jazz, funk e cacofonia chega a ser dançante. A prova maior está em I can’t stand myself, esquizofrênico cover de James Brown. Há ecos do punk rock no DNA e, em Not moving, por exemplo, surge uma espécie de refrão. A presença do órgão é outro diferencial do grupo, mas o destaque vai para as palhetadas espasmódicas de Arto Lindsay, também um vocalista notável.

Os momentos mais intrigantes de “No New York” estão nos dois nomes intermediários: Teenage Jesus & The Jerks (sensacional!) e Mars.

A primeira tem Lydia Lunch, a personalidade mais conhecida da no wave, na guitarra e nos vocais. O som é minimalista até o osso: “riffs”, bateria tribal e vocalizações desesperadas que resultam num clima claustrofóbico e atingem seu auge em The closet. E então vem o Mars, que consegue superar todos os padrões de estranheza da coletânea sem economizar nos ruídos ensurdecedores ou nos murmúrios incompreensíveis que permeiam as faixas. Tunnel, genuíno caos anti-musical, é o maior comprovante da proeza.


Com a mãozinha de Brian Eno, era oficial: a no wave, trocadilho infame com new wave, existia e ia muito bem. Só que havia outro personagem primordial além dos documentados em 1978...

Glenn Branca começou sua carreira artística em 1975 como, digamos assim, um dramaturgo alternativo ao fundar o grupo teatral Bastard Theatre em Boston. As boas avaliações de suas peças o motivaram a ir para Nova York continuar experimentando, mas assim que ele entrou em contato com aquela cena em ebulição, trocou as performances teatrais pelo instrumento que tocava desde os 15 anos, a guitarra.

Suas primeiras bandas foram as breves Static e Theoretical Girls. Com elas, Branca começou a dar forma ao seu estilo nada ortodoxo de tocar guitarra mesclando afinações alternativas, repetições e séries harmônicas, tudo no volume máximo. À certa altura ele começou a procurar mais guitarristas para compor sua orquestra e em 1980 estreou o primeiro sexteto – quatro guitarras, baixo e bateria – no EP “Lesson No. 1”Hoje considerado uma obra essencial da no wave, o debut de duas faixas abriu alas para a entrada de Lee Ranaldo e o começo da composição do trabalho definitivo de Branca: 


Uma linha de baixo penetrante, tons e caixa em sintonia e então – !!! – uma parede sonora tão ensurdecedora quanto cacos de vidro furando os tímpanos formada por quatro guitarras em comunhão ritualística. Lesson No. 2 abre “The Ascension” criando um clima opressor e onipresente.

O nome foi inspirado no homônimo disco de John Coltrane, um marco do free jazz, e a configuração da banda lembra a divisão entre sax barítono, alto, tenor e soprano. No texto da reedição de 2003, Lee Ranaldo confirma a analogia. Não por acaso, posteriormente Branca passou a batizar suas composições como sinfonias.

E faz todo o sentido. O entrosamento completo entre os guitarristas, cada um criando uma base diferente até todas entrarem em uníssono, é comparável ao trabalho de uma orquestra de tamanho reduzido. Glenn é o bandleader, o maestro que faz a orquestra ir do caótico ao melódico sutilmente.

As cinco peças instrumentais soam como uma busca pela ascensão, e quando a derradeira faixa-título finalmente chega a um terreno acima de nós, acaba sem delongas e deixa o ouvinte arfando por mais. Por essas e por outras, “The Ascension” transcendeu a no wave e o rock’n’roll e tem um lugar só seu na História da música.

Glenn Branca e seus discípulos. Detalhe para os dois primeiros da esquerda para a direita. KOOL THING!

E depois?

Ao contrário do punk, a no wave não se transformou num fenômeno cultural badalado, muito menos teve um fim definido. Mas o termo não caiu em desuso e permeia a música alternativa até os dias de hoje. O Sonic Youth, exemplo mais conhecido da influência do movimento, criou-se no underground novaiorquino e era classificado como no wave nos primórdios. A importância da obra de Glenn Branca para a dupla Thurston Moore e Lee Ranaldo é inestimável e facilmente perceptível. Alguns nomes do pós-punk, como Public Image Ltd. e Swans, também usaram a experimentação indiscriminada como referência.

Quanto aos no-wavers originais, alguns desapareceram no submundo e outros conseguiram manter a relevância. É o caso de Lydia Lunch, dona de uma vasta discografia e carreira respeitável como fotógrafa, poeta e atriz. O Contortions faz shows esporádicos e chegou a vir a São Paulo capital em 2013. Glenn Branca, o artista mais consagrado a sair da cena, segue escrevendo peças, tanto para guitarras quanto para orquestras convencionais, e é endeusado na Europa.

Mais recentemente, saiu no exterior o livro “No wave: post-punk. Underground. New York. 1976-1980”, escrito por Thurston Moore e Byron Coley, que me parece muito interessante e dificilmente será publicado por aqui. Diversas coletâneas abordando grupos ainda mais obscuros surgem ocasionalmente, bem como documentários, sendo a produção “Kill Your Idols” a mais citada.

Para terminar, uma frase de Lydia Lunch que explica e sintetiza o espírito desordeiro da no wave: “The whole fucking country was nihilistic. What did we come out of? The lie of the Summer of Love into Charles Manson and the Vietnam War. Where is the positivity?”. Perfeito. É isso aí.