segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Overdose garantida


1971. Os Stooges, a mais nova banda a chacoalhar as estruturas do rock’n’roll, são demitidos da Elektra apenas três anos após o contrato ser firmado. Entre 1969 e 1970 eles gravaram duas das obras mais caóticas da virada da década - o autointitulado“Fun House” - e deixaram um rastro de destruição meteórica por onde passaram. Mas isso não foi o bastante para construir um público. O som furioso, prenúncio do punk rock, também não ajudou.

Logo, não restou nenhuma alternativa ao frontman Iggy Pop a não ser sair de seu estado de origem, Michigan, e ir de encontro à efervescência cultural de Nova York. Lá, ele entrou em contato com o ascendente David Bowie e conseguiu um empresário, Tony Defries, para tentar manter sua alucinante carreira estável. O próximo passo foi reunir músicos.

Quando chegou a Nova York, Iggy já tinha em sua companhia o guitarrista James Williamson, com quem viria a escrever todas as músicas da última fase dos Stooges. Por mais que o plano inicial fosse montar uma banda nova, a dupla não tardou a perceber que eles precisavam dos antigos colegas do vocalista: os irmãos Ron e Scott Asheton. Então, um ano depois do fim, o trio mais selvagem de Detroit estava junto de novo, acompanhado por um guitarrista que nunca havia entrado em um estúdio antes. E com essa formação eles gravaram a obra máxima dos Stooges.

Da esquerda para a direita: James Williamson, Iggy Pop, Ron Asheton e Scott Asheton

A principal diferença entre a primeira e a segunda encarnação da banda é a presença de Williamson, que obrigou Ron, o antigo guitarrista, a passar para o baixo. O baixista original era Dave Alexander, demitido por beber demais (!) em 1970. De resto, estava tudo ali: a mesma inconsequência, a mesma loucura e os mesmos excessos. Eles começaram as sessões do terceiro álbum em setembro e saíram do estúdio no dia 6 de outubro de 1972 com oito faixas brutais, para dizer o mínimo.

Recepções e vendas calorosas nunca foram uma constante na carreira de Pop e seus comparsas, e com “Raw Power” não foi diferente. Diante das vendas pífias, Defries abandonou a banda e a CBS, gravadora que lançou “Raw Power”, também fez o mesmo. Eles sobreviveram até 1974 com apresentações bizarras marcadas pelo comportamento antagônico de um Iggy cada vez mais insano. Quando os Stooges finalmente implodiram, David Bowie foi responsável pelo ressurgimento do vocalista em uma carreira solo expressiva.

Com o passar dos anos a magnitude de “Raw Power” só aumentou. Kurt Cobain o citou diversas vezes em seus diários como seu álbum favorito de todos os tempos. Henry Rollins (Black Flag) tem “search & destroy”, o nome da faixa de abertura, tatuado nas costas. De acordo com Steve Jones (Sex Pistols), ele aprendeu a tocar guitarra ouvindo o álbum chapado de anfetamina. Nem mesmo o polêmico Morrissey ficou incólume diante do poder de fogo de “Raw Power”, caracterizando Search and destroy como “ótima” e “uma música muito Los Angeles”.

E então eis que, em 1997, a Columbia convida Iggy Pop para remixar o disco originalmente remixado por Bowie em 1973. Desde a década de 90, cópias com a mixagem original circulavam entre fãs e Pop citou isso como a principal razão pela qual ele aceitou o convite. Mas essa empreitada só deu margem para mais confusão.

Comparando o som original com o relançamento, a primeira característica que salta aos ouvidos é o volume da cozinha dos Asheton. Em nenhum dos dois ela toma o lugar da guitarra ou do vocal, mas Bowie fez com que a banda toda soasse uniforme, enquanto Iggy deixou os riffs e solos de Williamson no talo e fez cada música soar como uma corrida entre baixo-bateria e guitarra-vocal. Numa audição mais atenta, é perceptível a menor duração do relançamento, principalmente em Death trip, a última faixa. Penetration também merece nota por ter seus ruídos psicodélicos diminuídos.

O relançamento é motivo de discórdia entre os fãs até hoje. Mas, no fim das contas, qual dos dois é melhor: o som mais encorpado da primeira versão ou a crueza brutal da segunda? Fico com a segunda por puro costume. É a versão que eu comprei e já me acostumei com sua brutalidade ensurdecedora. Para mim, “Raw Power” soa absolutamente fantástico desse jeito. Desde o início arrebatador com Search and destroy até o final improvisado com Death trip, passando pela melódica Gimme danger e pela maníaca Penetration, é puro caos. E é demais. Um dos melhores e maiores discos da história do rock’n’roll.


Clique aqui para baixar a mixagem de David Bowie de 1973.

Clique aqui para baixar a remixagem de Iggy Pop de 1997. Obs.: de acordo com o Chicago Mastering Service, esse é o CD mais alto de todos os tempos e “the most ear-fatigue-inducing way to get things loud”. Digno.

É o seguinte: baixe ou compre qualquer uma das duas edições (a de 1997 é mais fácil de se achar), coloque no seu aparelho de som no volume máximo e assista todo o seu quarto ser chacoalhado pelo verdadeiro poltergeist que é “Raw Power”. Experiência incrível, eu te garanto.

Raw power is sure to come a-runnin' to you!!!

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Uma viagem desafiadora


Não é de hoje que o death metal sueco é referência para os entusiastas do gênero. Ao começo da década de 90, nomes como Entombed e Unleashed formaram a linha de frente da cena metálica da Suécia e assombraram o mundo com uma sonoridade toda original cujo aspecto mais notável era o timbre denso das guitarras. Tempos depois foi injetada certa dose de melodia ao massacre auditivo, como pode ser visto nos trabalhos do Arch Enemy e do At The Gates, por exemplo. Mas nada tão fora dos padrões suecos, visto que por aquelas bandas também há o Opeth, que nunca se assumiu completamente death e vem cada vez mais se afastando do gênero.

Tendo uma instituição como essa a sua volta, é comum que grupos mais recentes do país nórdico sigam as fórmulas dos predecessores. E não foi diferente com o Morbus Chron. Fundada em 2007 na capital Estocolmo, a banda mostrou no seu debut de 2011 que o Entombed continuava fazendo a cabeça dos metalheads locais. Está tudo ali: os riffs sujos, as letras repugnantes, as passagens cadenciadas. Apenas a última faixa de "Sleepers In The Rift" difere um pouco das outras pelos momentos arrastados e atmosféricos. Mas o tempo passou e transformou um grupo nada mais que mediano num verdadeiro monstro. 

A guinada na carreira do jovem quarteto veio quando eles assinaram com a renomada Century Media. "A Saunter Through The Shroud", o primeiro EP na nova gravadora, já denuncia a busca por novos ares. A sonoridade do registro é muito mais equilibrada e estruturada e serviu de aperitivo para um dos álbuns mais memoráveis do ano: o espetacular "Sweven".

Não há forma mais eficaz de esterilizar uma manifestação artística que a rotulando. E aí está o maior trunfo do novo disco do Morbus Chron, lançado em fevereiro: são tantas nuances distintas que fica difícil rotular. Esses caras transcenderam as fronteiras do death metal e conceberam algo infinitamente mais interessante e digno de atenção. É metal, mas resumir "Sweven" apenas com esse termo é uma injustiça tremenda.

Os primeiros momentos do registro já mostram o porquê. Berceuse é um instrumental suave e sombrio ao mesmo tempo, recheado com uma psicodelia que faz toda a diferença. E, sem indicação sequer, somos transportados para a próxima faixa, Chains, onde o clima sombrio persiste e a quantidade de bons riffs aumenta consideravelmente. Fica claro que o instrumental em si é muito mais destacado em comparação aos vocais rasgados, impressão constante ao longo dos 53 minutos. 

A partir daí a viagem ganha contornos cada vez mais incríveis. Há a contemporaneidade em equilíbrio com a tradição na destruidora Towards a dark sky, as passagens quase doom metal na alucinante Aurora in the offing, o belíssimo solo de guitarra de Ripening life, o clima épico da absurda The perennial link, enfim. As dez músicas são igualmente destacáveis e não podem ser dissociadas umas das outras visto que no próprio "Sweven" elas são interligadas por meio de curtas passagens instrumentais. Só na melódica Terminus essa verdadeira jornada se encerra, em fade out, deixando no ar o que virá em seguida.

E é inevitável não criar expectativas sobre o próximo passo do Morbus Chron. Por ora, "Sweven" se conserva no topo, arrebatador e desafiador em sua atmosfera peculiar. Resta esperar por uma nova obra desses suecos muitíssimo promissores; e que essa obra também seja desafiadora.

Ouça a obra de arte aqui.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Ataxia, o supergrupo de duas semanas


A segunda saída de John Frusciante do Red Hot Chili Peppers, quase vinte anos após a primeira, não foi algo inesperado. Desde 1998, quando o guitarrista retornou ao grupo, a rotina de trabalho era intensiva e a exaustão tomou conta de todos os membros. Por isso, aproveitando o hiato indefinido dos Peppers que se instalou em 2008, Frusciante abandonou o barco e tornou a se concentrar integralmente em sua carreira solo. E não demonstrou sinais de querer retomar o posto desde então.

A carreira solo, contudo, nunca foi deixada em segundo plano, mesmo durante o tempo em que ele gravava e excursionava com seu projeto mais famoso. Seu primeiro disco data de 1994 e até o momento o cara mostrou uma produtividade notável levando em conta os diversos compromissos do RHCP, inclusive produzindo e gravando com outros artistas. Isso foi determinante para que uma base fiel de fãs fosse conquistada e ele se tornasse um nome de respeito nos circuitos alternativos, além de, é claro, ter mostrado sua capacidade criativa fora de um nome ilustre.

Criatividade, aliás, foi a palavra de ordem para John em 2004. Enquanto fazia uma turnê promovendo "By The Way" ao lado de Anthony Kiedis e companhia, ele foi capaz de lançar nada menos que sete álbuns, dos quais seis foram registrados em um período de seis meses. E isso não foi o bastante para a inventividade do novaiorquino: ao lado do baixista Joe Lally (Fugazi) e do atual guitarrista do RHCP, Josh Klinghoffer, que cuidou da bateria e dos sintetizadores, ele montou uma espécie de supergrupo do rock alternativo que durou duas semanas em estúdio e dois shows ao vivo; e era essa a idéia.


O trio se conhecia de outros carnavais. John sempre foi um frequente espectador dos shows do Fugazi, bem como seu companheiro de banda Flea. De acordo com Joe Lally, ele e Frusciante passaram a se comunicar mais quando o baixista se mudou para Los Angeles. A afinidade musical dos dois era grande, logo, não foi tão surpreendente para Lally ser convidado a fazer um show com o ex-RHCP e Josh Klinghoffer. Mas a idéia só tomou forma a partir do momento em que os três entraram em estúdio e... simplesmente tocaram.

Ataxia é uma deficiência neurológica que prejudica a coordenação dos músculos e afeta o equilíbrio do paciente. Ao batizar o breve projeto com esse nome, fica claro o que a banda queria: resumir a atmosfera desconfortável de seu som em uma palavra. A sonoridade, no entanto, não foi predeterminada. Eles apenas se enfurnavam no estúdio e, sob o comando do baixo de Joe, improvisavam até que algo de interessante saísse dali. A fórmula deu certo.

Foram duas semanas de gravação e dez músicas registradas, divididas entre "Automatic Writing" (2004) e "AW II" (2007). São discos uniformes, marcados por riffs estridentes, letras abstratas e baixo monótono, sempre o fio condutor de cada faixa. A grande duração das músicas reflete a tamanha improvisação e ressalta o clima experimental e opressor. Quando dei play em Dust, abertura do álbum de 2004, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a sufocante obra-prima do P.I.L, "Metal Box".

Falando em influências, há momentos que remetem ao Fugazi (The sides, do primeiro, e Union, do segundo) por conta dos ótimos riffs de Frusciante. Outras passagens, principalmente as de "AW II", são menores e mais acessíveis. Mas o Ataxia em sua melhor forma está nas músicas que ultrapassam os seis minutos, recheadas de vocais nada técnicos e bateria frenética. É essa a marca registrada desse interessante projeto paralelo.


A banda se desmantelou logo depois de finalizar as gravações. Frusciante continuou (e continua) registrando mais e mais material, Lally embarcou numa carreira solo e Klinghoffer se dedicou a empreitadas ao lado de Frusciante ou sozinho até substituí-lo no RHCP em 2008. O Ataxia merece atenção por ser um encontro extremamente curioso entre três instrumentistas sinceros, fazendo música só pelo prazer de fazer música. Um verso quase declamado por Lally em Montreal, a última de "Automatic Writing", sintetiza bem essa sinceridade:

I won't do what they tell me
No, I'll stay just the same...


Post dedicado ao Vinicius, parceiro de algum tempo que me apresentou a essa maravilha e é o maior fã de John Frusciante que já vi. É noise!

domingo, 10 de agosto de 2014

Essas pessoas na sala de jantar...


Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer...

Esses enigmáticos versos abrem o primeiro álbum dos Mutantes, um dos nomes mais importantes da nossa música. O ar psicodélico e experimental de Panis et circenses, incrementado pelos arranjos de sopro do maestro Rogério Duprat e por efeitos sonoros peculiares, logo denuncia: estamos diante de algo sem precedentes na história da música brasileira.

Os Mutantes são um exemplo gritante de que o complexo de vira-lata é absurdo, mas, ainda assim, sua notoriedade é muito maior lá fora do que aqui. Apreciada por gente como o finado Kurt Cobain e Sean Ono Lennon, filho de John Lennon, a banda virou o status quo da MPB às avessas no final dos anos 60 com sua mistura vanguardista entre os ritmos brasileiros e as tendências do exterior. E seu legado permanece atemporal.

Eles apareceram em público pela primeira vez no programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von da TV Record, em 1966. O trio Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee encantou tanto com seu carisma e bom humor que logo foi contratado como atração fixa. Arnaldo e Sérgio, apesar dos sobrenomes diferentes, eram irmãos criados num ambiente regado a muita música: a mãe dos rapazes era uma grande pianista. Tal criação parece ter despertado em ambos um talento nato para a música, e Sérgio teve sua primeira banda aos 16 anos, o Wooden Faces.

Rita Lee Jones Carvalho, filha de imigrante norte-americano e de descendente de italianos, teve aulas de piano clássico e estudou em colégio francês. Mas foi no rock'n'roll de Elvis, Beatles e Rolling Stones e na bossa nova de João Gilberto que ela se encontrou e, em 63, integra seu primeiro grupo: as Teenage Singers. Foi questão de tempo para que os dois projetos se conhecessem e, já com Arnaldo no baixo, estava formado o O'Seis.


Um compacto depois, a banda se desmantelou, restando apenas o trio Arnaldo-Sérgio-Rita. O ponto de partida para o sucesso veio quando os adolescentes conheceram Ronnie Von, o responsável pela escolha do nome: na época, o chamado príncipe da Jovem Guarda estava lendo O império dos mutantes. Eles atuaram no programa do cantor até 1967 e logo em seguida entraram em contato com Gilberto Gil e todos os representantes do Tropicalismo, movimento que visava quebrar os padrões estéticos e musicais da MPB. Gil ficou encantado com o talento dos três (que sequer sabiam ler partituras) e convocou os novatos para acompanhá-lo no III Festival da Record.

A execução de Domingo no parque ao lado de Gil deixou parte da plateia escandalizada por conta da guitarra distorcida de Sérgio, mas chamou a atenção da Polydor e não tardou para Os Mutantes assinarem contrato. Antes de entrar em estúdio, eles gravam um disco com Gilberto Gil e um com Caetano Veloso, o que reforça ainda mais sua associação com a polêmica Tropicália. Mas o álbum solo deixou claro que aquelas caras novas eram muito mais que mera banda de apoio.


O disco de estreia, produzido por Manuel Bareinbein e Rogério Duprat, transpira talento, experimentalismo e inovação por todos os poros. A abertura, citada no início desse texto, já impressiona pelo ritmo inconstante e pela originalidade. A minha menina, a segunda faixa, é um samba rock com Jorge Ben nos violões e é o atestado maior de todo o bom humor do grupo. Imagine-se ouvindo isso em tempos onde ou se era um intelectual apreciador da MPB formal ou se era um adolescente ouvinte da Jovem Guarda.

A característica mais notável de "Os Mutantes" é a tamanha versatilidade de três instrumentistas que não chegavam aos 16 anos. Eles se arriscam a desconstruir o baião (Adeus, Maria Fulô), homenageiam os standards do jazz (Senhor F), partem em viagens etéreas (O relógio e Le premier bonheur du jour) e se aproximam dos Beatles com muita personalidade (Trem fantasma). Tudo isso com tanta simplicidade que parece que não passam de três amigos brincando de fazer música na garagem de casa.

Outros momentos notáveis são Baby, composta por Caetano, a clássica Bat macumba, da dupla Caetano/Gil, e o encerramento instrumental Ave Gengis Khan. Nessas passagens, aliás, o estilo de Sérgio é um destaque inevitável: sua guitarra rascante fazendo o papel do violão, junto com o teclado e o baixo de seu irmão, é algo simplesmente incendiário. A competência de Arnaldo ficaria muito mais latente nos lançamentos posteriores dos Mutantes, mas aqui ele já se mostra muitíssimo eficiente. E Rita não fica atrás, sendo uma boa intérprete e uma flautista e tanto.
Depois do primeiro álbum, Os Mutantes não param mais: gravam com Rogério Duprat, participam do "disco-manifesto" "Tropicália ou Panis Et Circenses" e dão as caras em outros tantos festivais de música, sempre impressionando quem quer que fosse, para o bem ou para o mal. Era uma história recheada de genialidade começando, o início da trajetória de um dos grupos essenciais (talvez o mais essencial) do rock e da música brasileira. Não seria exagero dizer que se pode dividir o rock'n'roll brazuca entre pré-Mutantes e pós-Mutantes. Ouça a obra-prima de 1968 e comprove por si mesmo.

Bat macumba ê
Bat macumba ôbá...

quinta-feira, 31 de julho de 2014

I'm living in the eighties: a primeira década do Killing Joke


Sabe aquela banda que influenciou um sem-número de artistas aclamados mas não igualou a fama dos mesmos? 

O Killing Joke é um bom exemplar. Seu impacto se mostrou especial na geração dos anos 90: de Nirvana a Metallica, de Nine Inch Nails a Faith No More, todos foram impelidos pelo Killing Joke a alguma direção, de alguma forma. O próprio grupo capitaneado pelo icônico Jaz Coleman se direciona a novos caminhos constantemente. Tem sido assim por pouco menos de 30 anos.

E essa longa história começa em Londres, 1979, quando Jaz conhece Paul Ferguson. Sendo eles vocalista e baterista, respectivamente, a dupla decide recrutar membros para um projeto que buscava, nas palavras de Coleman, "definir a beleza da era atômica em estilo, som e forma". Logo aparecem Martin "Youth" Glover e Kevin "Geordie" Walker e a formação clássica do Killing Joke se reúne pela primeira vez. O EP "Turn To Red" é a estreia desse line-up e, na época, caiu nas graças do lendário radialista John Peel. John Lydon, já à frente do Public Image Ltd., também manifestou apreço ao pós-punk distinto dos novatos.

A distinção se dava pelo uso dos sintetizadores em conjunção com os riffs distorcidíssimos de Geordie, característica recorrente na carreira do Killing Joke. O pequeno registro traz esse aspecto, mas é uma peça única na discografia do grupo por conter muito do reggae e dub jamaicanos. E apesar da atmosfera amadora, ressaltada pela produção precária, a competência dos envolvidos já é um destaque, especialmente as linhas de baixo de Youth e a performance de Coleman.

Em seu debut propriamente dito, registrado em 1980, o quarteto disseminou as raízes do rock industrial usando e abusando de riffs distorcidos, andamento cadenciado e letras proféticas, quase apocalípticas. O disco possui uma atmosfera muito sombria e é um dos mais cultuados daquela época. Basta ouvir pedradas do nível de Requiem, Wardance e The Wait para constatar o imenso talento dos envolvidos na construção de ambientes pesados. Para mim, a audição do álbum equivale ao campo de batalha, entre trincheiras e desastres atômicos; e acho que era essa a intenção. Um verdadeiro clássico.


Logo a base de fãs do Killing Joke estava se formando, e nisso eles também foram diferenciados: seus shows arrebanhavam tanto fãs do pós-punk quanto do heavy metal. As apresentações, aliás, foram o primeiro passo para a notoriedade da banda. No palco Jaz Coleman maximizava as performances neuróticas e, não por acaso, sua imagem acabou se tornando sinônimo de Killing Joke. Some isso às polêmicas envolvendo o uso de fotografias relacionadas ao Terceiro Reich e temos aí um dos nomes mais bombásticos da década de 1980 (e das posteriores também).

A partir do segundo lançamento, "What's THIS For...!", o baterista Paul Ferguson adotou uma forma de tocar que se manteria em todos os discos até 1985: guiar o andamento de cada música principalmente pelos tons da bateria, tal qual as percussões tribais de algum ritual exótico. É essa característica que dá o tom opressivo e desconfortável do disco, o qual contém algumas das melhores composições da carreira do Killing Joke.

No ano seguinte o grupo decidiu se mudar para a Alemanha a fim de gravar material com o renomado produtor Conny Plank (Kraftwerk, Neu!). O resultado divide opiniões: enquanto uns veem instrumentistas fora de sintonia, outros enxergam em "Revelations" uma obra única do pós-punk oitentista; faço parte da segunda vertente. O fato é que este viria a ser o último momento da formação original até 2010, além de se tratar de uma ponte entre a agressividade selvagem dos primórdios e o consecutivo som mais palatável.

Mais palatável, não totalmente pop. Como ficou claro no excelente "Fire Dances", a estreia do baixista Paul Raven, as doses de melodia aumentaram consideravelmente e Coleman começava a mostrar seu verdadeiro potencial como cantor. No entanto, a lírica obscura e os riffs ruidosos continuavam ali, ao mesmo tempo em que o papel dos sintetizadores crescia. E foi na obra-prima "Night Time" que essa fórmula amadureceu de vez.
Não é por acaso que "Night Time" é o disco mais lembrado quando se fala em Killing Joke. No álbum de 1985 o grupo está no auge, conciliando com propriedade a faceta sombria e as tendências da época e, assim, dando forma a um New Wave muito menos festeiro que de costume. Só há pérolas no setlist, mas uma delas merece nota: a clássica Love Like Blood, o maior hit dos caras e uma pequena obra-prima. Isso sem falar na antológica Eighties, outro grande atestado da influência de Jaz Coleman e companhia. Riff familiar, não é mesmo?



Infelizmente, o brilhantismo não foi repetido com a mesma eficácia depois. "Brighter Than A Thousand Suns", apesar de ter sua qualidade, fica devendo. Quase totalmente guiado pelos sintetizadores, o trabalho não foi unanimidade e traz um dos melhores desempenhos de Jaz, tanto como vocalista quanto como letrista. Mas o aparato tecnológico deixa a guitarra rascante de Geordie em segundo plano, o que só prejudica a audição. Isso se repete no péssimo "Outside The Gate", planejado como um álbum solo do frontman e a primeira grande mancha na carreira dos ingleses. Suas gravações foram tão conturbadas que renderam a saída de Raven e Ferguson e o fim (temporário) do Killing Joke.

Coleman, Geordie e Raven retornariam em 1990 com "Extremities, Dirt & Various Repressed Emotions", uma espécie de volta às raízes mais cruas. Mas isso é história pra outro post. Por enquanto, fique com o massacre sonoro da primeira década do quarteto, certa vez descrito como "o som da Terra vomitando" por Paul Ferguson e essencial para se entender o que veio depois. This is music to march to; do a war dance!

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Século Sinistro: os tempos atuais segundo o Ratos de Porão


As manifestações pelos quatro cantos do Brasil no ano de 2013 mexeram ao menos um pouco com o senso patriótico e crítico de cada cidadão. O tempo passou e, principalmente por causa das polêmicas envolvendo black blocs e afins, as insurreições continuam fazendo barulho. Independentemente de sua eficácia, os protestos foram (e estão sendo) válidos por se tratarem de estímulos à cidadania, valor pouco explorado em nossa sociedade.

Esse cenário caótico acabou servindo também para inspirar os veteranos do Ratos de Porão na concepção de um novo álbum. Sem lançar material inédito desde 2010 (ano em que gravaram um split com os espanhóis do Looking For An Answer), os paulistanos comemoraram três décadas de carreira recentemente e sentiram que era chegada a hora de “Homem Inimigo do Homem” (2006) ganhar um sucessor.

É preciso salientar que o quarteto não está mais na flor da idade. Os ensaios, a partir de um dado momento, foram sendo dificultados tanto pelas obrigações familiares quanto pela localização de cada um: o baterista Boka mora em Santos, enquanto os restantes residem na capital São Paulo. Mesmo assim, os shows não pararam (houve até mesmo uma passagem pela República Tcheca esse ano) e ao que tudo indica o entrosamento não diminuiu um milésimo.

As sessões de gravação aconteceram no Family Mob Studios, em São Paulo, e foram totalmente analógicas. A capa, assinada por Ricardo Tattoo, resume bem a atmosfera do registro e seus principais temas: a alienação promovida pela mídia e pelas redes sociais, o lamentável sistema carcerário brasileiro e a corrupção, já intrínseca à sociedade. Quanto ao som, é evidente que eles conquistaram (mais uma vez) o equilíbrio entre o metal e o hardcore; ou seja, o mais puro crossover.

“Século Sinistro” começa cheirando a clássico: Conflito Violento tem tudo para se tornar presença obrigatória em setlists futuros, ao mesmo tempo em que soa absolutamente contemporânea por conta de sua intro. Neocanibalismo pende para o death metal em algumas passagens e conta com um solo insano de Moyses Kolesne (Krisiun). A competência da dupla Juninho e Boka fica clara na cadenciada Grande Bosta, cuja letra é um retrato sem retoques do povo brasileiro. O maior destaque de Sangue e Bunda vai para os “guturais” de Atum, o porco de estimação de João Gordo, e para os riffs ganchudos de Jão.

Não há muito que falar sobre a faixa-título: hardcore direto e reto do jeito que só o RDP sabe fazer. Jornada Para O Inferno é outro destaque inevitável, assim como o crossover tradicional de Prenúncio de Treta e a metálica Stress Pós-Traumático. A letra de Viciado Digital, por outro lado, é contemporaneidade pura e, de certo modo, triste. Como destaques finais, a versão para Progreria of Power, novamente com a presença de Moyses, e Puta, Viagra e Corrupção, tão boa quanto seu título.

O valor de “Século Sinistro” vai além da potência sonora. Sua temática é indissociável do cenário socioeconômico e político de nosso país, o que também acontece no quarto álbum dos caras, não coincidentemente intitulado “Brasil” (1989). Por isso, “Século Sinistro” é uma adição de respeito à discografia do Ratos; e, para mim, um clássico moderno.