quinta-feira, 31 de julho de 2014

I'm living in the eighties: a primeira década do Killing Joke


Sabe aquela banda que influenciou um sem-número de artistas aclamados mas não igualou a fama dos mesmos? 

O Killing Joke é um bom exemplar. Seu impacto se mostrou especial na geração dos anos 90: de Nirvana a Metallica, de Nine Inch Nails a Faith No More, todos foram impelidos pelo Killing Joke a alguma direção, de alguma forma. O próprio grupo capitaneado pelo icônico Jaz Coleman se direciona a novos caminhos constantemente. Tem sido assim por pouco menos de 30 anos.

E essa longa história começa em Londres, 1979, quando Jaz conhece Paul Ferguson. Sendo eles vocalista e baterista, respectivamente, a dupla decide recrutar membros para um projeto que buscava, nas palavras de Coleman, "definir a beleza da era atômica em estilo, som e forma". Logo aparecem Martin "Youth" Glover e Kevin "Geordie" Walker e a formação clássica do Killing Joke se reúne pela primeira vez. O EP "Turn To Red" é a estreia desse line-up e, na época, caiu nas graças do lendário radialista John Peel. John Lydon, já à frente do Public Image Ltd., também manifestou apreço ao pós-punk distinto dos novatos.

A distinção se dava pelo uso dos sintetizadores em conjunção com os riffs distorcidíssimos de Geordie, característica recorrente na carreira do Killing Joke. O pequeno registro traz esse aspecto, mas é uma peça única na discografia do grupo por conter muito do reggae e dub jamaicanos. E apesar da atmosfera amadora, ressaltada pela produção precária, a competência dos envolvidos já é um destaque, especialmente as linhas de baixo de Youth e a performance de Coleman.

Em seu debut propriamente dito, registrado em 1980, o quarteto disseminou as raízes do rock industrial usando e abusando de riffs distorcidos, andamento cadenciado e letras proféticas, quase apocalípticas. O disco possui uma atmosfera muito sombria e é um dos mais cultuados daquela época. Basta ouvir pedradas do nível de Requiem, Wardance e The Wait para constatar o imenso talento dos envolvidos na construção de ambientes pesados. Para mim, a audição do álbum equivale ao campo de batalha, entre trincheiras e desastres atômicos; e acho que era essa a intenção. Um verdadeiro clássico.


Logo a base de fãs do Killing Joke estava se formando, e nisso eles também foram diferenciados: seus shows arrebanhavam tanto fãs do pós-punk quanto do heavy metal. As apresentações, aliás, foram o primeiro passo para a notoriedade da banda. No palco Jaz Coleman maximizava as performances neuróticas e, não por acaso, sua imagem acabou se tornando sinônimo de Killing Joke. Some isso às polêmicas envolvendo o uso de fotografias relacionadas ao Terceiro Reich e temos aí um dos nomes mais bombásticos da década de 1980 (e das posteriores também).

A partir do segundo lançamento, "What's THIS For...!", o baterista Paul Ferguson adotou uma forma de tocar que se manteria em todos os discos até 1985: guiar o andamento de cada música principalmente pelos tons da bateria, tal qual as percussões tribais de algum ritual exótico. É essa característica que dá o tom opressivo e desconfortável do disco, o qual contém algumas das melhores composições da carreira do Killing Joke.

No ano seguinte o grupo decidiu se mudar para a Alemanha a fim de gravar material com o renomado produtor Conny Plank (Kraftwerk, Neu!). O resultado divide opiniões: enquanto uns veem instrumentistas fora de sintonia, outros enxergam em "Revelations" uma obra única do pós-punk oitentista; faço parte da segunda vertente. O fato é que este viria a ser o último momento da formação original até 2010, além de se tratar de uma ponte entre a agressividade selvagem dos primórdios e o consecutivo som mais palatável.

Mais palatável, não totalmente pop. Como ficou claro no excelente "Fire Dances", a estreia do baixista Paul Raven, as doses de melodia aumentaram consideravelmente e Coleman começava a mostrar seu verdadeiro potencial como cantor. No entanto, a lírica obscura e os riffs ruidosos continuavam ali, ao mesmo tempo em que o papel dos sintetizadores crescia. E foi na obra-prima "Night Time" que essa fórmula amadureceu de vez.
Não é por acaso que "Night Time" é o disco mais lembrado quando se fala em Killing Joke. No álbum de 1985 o grupo está no auge, conciliando com propriedade a faceta sombria e as tendências da época e, assim, dando forma a um New Wave muito menos festeiro que de costume. Só há pérolas no setlist, mas uma delas merece nota: a clássica Love Like Blood, o maior hit dos caras e uma pequena obra-prima. Isso sem falar na antológica Eighties, outro grande atestado da influência de Jaz Coleman e companhia. Riff familiar, não é mesmo?



Infelizmente, o brilhantismo não foi repetido com a mesma eficácia depois. "Brighter Than A Thousand Suns", apesar de ter sua qualidade, fica devendo. Quase totalmente guiado pelos sintetizadores, o trabalho não foi unanimidade e traz um dos melhores desempenhos de Jaz, tanto como vocalista quanto como letrista. Mas o aparato tecnológico deixa a guitarra rascante de Geordie em segundo plano, o que só prejudica a audição. Isso se repete no péssimo "Outside The Gate", planejado como um álbum solo do frontman e a primeira grande mancha na carreira dos ingleses. Suas gravações foram tão conturbadas que renderam a saída de Raven e Ferguson e o fim (temporário) do Killing Joke.

Coleman, Geordie e Raven retornariam em 1990 com "Extremities, Dirt & Various Repressed Emotions", uma espécie de volta às raízes mais cruas. Mas isso é história pra outro post. Por enquanto, fique com o massacre sonoro da primeira década do quarteto, certa vez descrito como "o som da Terra vomitando" por Paul Ferguson e essencial para se entender o que veio depois. This is music to march to; do a war dance!

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Século Sinistro: os tempos atuais segundo o Ratos de Porão


As manifestações pelos quatro cantos do Brasil no ano de 2013 mexeram ao menos um pouco com o senso patriótico e crítico de cada cidadão. O tempo passou e, principalmente por causa das polêmicas envolvendo black blocs e afins, as insurreições continuam fazendo barulho. Independentemente de sua eficácia, os protestos foram (e estão sendo) válidos por se tratarem de estímulos à cidadania, valor pouco explorado em nossa sociedade.

Esse cenário caótico acabou servindo também para inspirar os veteranos do Ratos de Porão na concepção de um novo álbum. Sem lançar material inédito desde 2010 (ano em que gravaram um split com os espanhóis do Looking For An Answer), os paulistanos comemoraram três décadas de carreira recentemente e sentiram que era chegada a hora de “Homem Inimigo do Homem” (2006) ganhar um sucessor.

É preciso salientar que o quarteto não está mais na flor da idade. Os ensaios, a partir de um dado momento, foram sendo dificultados tanto pelas obrigações familiares quanto pela localização de cada um: o baterista Boka mora em Santos, enquanto os restantes residem na capital São Paulo. Mesmo assim, os shows não pararam (houve até mesmo uma passagem pela República Tcheca esse ano) e ao que tudo indica o entrosamento não diminuiu um milésimo.

As sessões de gravação aconteceram no Family Mob Studios, em São Paulo, e foram totalmente analógicas. A capa, assinada por Ricardo Tattoo, resume bem a atmosfera do registro e seus principais temas: a alienação promovida pela mídia e pelas redes sociais, o lamentável sistema carcerário brasileiro e a corrupção, já intrínseca à sociedade. Quanto ao som, é evidente que eles conquistaram (mais uma vez) o equilíbrio entre o metal e o hardcore; ou seja, o mais puro crossover.

“Século Sinistro” começa cheirando a clássico: Conflito Violento tem tudo para se tornar presença obrigatória em setlists futuros, ao mesmo tempo em que soa absolutamente contemporânea por conta de sua intro. Neocanibalismo pende para o death metal em algumas passagens e conta com um solo insano de Moyses Kolesne (Krisiun). A competência da dupla Juninho e Boka fica clara na cadenciada Grande Bosta, cuja letra é um retrato sem retoques do povo brasileiro. O maior destaque de Sangue e Bunda vai para os “guturais” de Atum, o porco de estimação de João Gordo, e para os riffs ganchudos de Jão.

Não há muito que falar sobre a faixa-título: hardcore direto e reto do jeito que só o RDP sabe fazer. Jornada Para O Inferno é outro destaque inevitável, assim como o crossover tradicional de Prenúncio de Treta e a metálica Stress Pós-Traumático. A letra de Viciado Digital, por outro lado, é contemporaneidade pura e, de certo modo, triste. Como destaques finais, a versão para Progreria of Power, novamente com a presença de Moyses, e Puta, Viagra e Corrupção, tão boa quanto seu título.

O valor de “Século Sinistro” vai além da potência sonora. Sua temática é indissociável do cenário socioeconômico e político de nosso país, o que também acontece no quarto álbum dos caras, não coincidentemente intitulado “Brasil” (1989). Por isso, “Século Sinistro” é uma adição de respeito à discografia do Ratos; e, para mim, um clássico moderno.