sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Ataxia, o supergrupo de duas semanas


A segunda saída de John Frusciante do Red Hot Chili Peppers, quase vinte anos após a primeira, não foi algo inesperado. Desde 1998, quando o guitarrista retornou ao grupo, a rotina de trabalho era intensiva e a exaustão tomou conta de todos os membros. Por isso, aproveitando o hiato indefinido dos Peppers que se instalou em 2008, Frusciante abandonou o barco e tornou a se concentrar integralmente em sua carreira solo. E não demonstrou sinais de querer retomar o posto desde então.

A carreira solo, contudo, nunca foi deixada em segundo plano, mesmo durante o tempo em que ele gravava e excursionava com seu projeto mais famoso. Seu primeiro disco data de 1994 e até o momento o cara mostrou uma produtividade notável levando em conta os diversos compromissos do RHCP, inclusive produzindo e gravando com outros artistas. Isso foi determinante para que uma base fiel de fãs fosse conquistada e ele se tornasse um nome de respeito nos circuitos alternativos, além de, é claro, ter mostrado sua capacidade criativa fora de um nome ilustre.

Criatividade, aliás, foi a palavra de ordem para John em 2004. Enquanto fazia uma turnê promovendo "By The Way" ao lado de Anthony Kiedis e companhia, ele foi capaz de lançar nada menos que sete álbuns, dos quais seis foram registrados em um período de seis meses. E isso não foi o bastante para a inventividade do novaiorquino: ao lado do baixista Joe Lally (Fugazi) e do atual guitarrista do RHCP, Josh Klinghoffer, que cuidou da bateria e dos sintetizadores, ele montou uma espécie de supergrupo do rock alternativo que durou duas semanas em estúdio e dois shows ao vivo; e era essa a idéia.


O trio se conhecia de outros carnavais. John sempre foi um frequente espectador dos shows do Fugazi, bem como seu companheiro de banda Flea. De acordo com Joe Lally, ele e Frusciante passaram a se comunicar mais quando o baixista se mudou para Los Angeles. A afinidade musical dos dois era grande, logo, não foi tão surpreendente para Lally ser convidado a fazer um show com o ex-RHCP e Josh Klinghoffer. Mas a idéia só tomou forma a partir do momento em que os três entraram em estúdio e... simplesmente tocaram.

Ataxia é uma deficiência neurológica que prejudica a coordenação dos músculos e afeta o equilíbrio do paciente. Ao batizar o breve projeto com esse nome, fica claro o que a banda queria: resumir a atmosfera desconfortável de seu som em uma palavra. A sonoridade, no entanto, não foi predeterminada. Eles apenas se enfurnavam no estúdio e, sob o comando do baixo de Joe, improvisavam até que algo de interessante saísse dali. A fórmula deu certo.

Foram duas semanas de gravação e dez músicas registradas, divididas entre "Automatic Writing" (2004) e "AW II" (2007). São discos uniformes, marcados por riffs estridentes, letras abstratas e baixo monótono, sempre o fio condutor de cada faixa. A grande duração das músicas reflete a tamanha improvisação e ressalta o clima experimental e opressor. Quando dei play em Dust, abertura do álbum de 2004, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a sufocante obra-prima do P.I.L, "Metal Box".

Falando em influências, há momentos que remetem ao Fugazi (The sides, do primeiro, e Union, do segundo) por conta dos ótimos riffs de Frusciante. Outras passagens, principalmente as de "AW II", são menores e mais acessíveis. Mas o Ataxia em sua melhor forma está nas músicas que ultrapassam os seis minutos, recheadas de vocais nada técnicos e bateria frenética. É essa a marca registrada desse interessante projeto paralelo.


A banda se desmantelou logo depois de finalizar as gravações. Frusciante continuou (e continua) registrando mais e mais material, Lally embarcou numa carreira solo e Klinghoffer se dedicou a empreitadas ao lado de Frusciante ou sozinho até substituí-lo no RHCP em 2008. O Ataxia merece atenção por ser um encontro extremamente curioso entre três instrumentistas sinceros, fazendo música só pelo prazer de fazer música. Um verso quase declamado por Lally em Montreal, a última de "Automatic Writing", sintetiza bem essa sinceridade:

I won't do what they tell me
No, I'll stay just the same...


Post dedicado ao Vinicius, parceiro de algum tempo que me apresentou a essa maravilha e é o maior fã de John Frusciante que já vi. É noise!

domingo, 10 de agosto de 2014

Essas pessoas na sala de jantar...


Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer...

Esses enigmáticos versos abrem o primeiro álbum dos Mutantes, um dos nomes mais importantes da nossa música. O ar psicodélico e experimental de Panis et circenses, incrementado pelos arranjos de sopro do maestro Rogério Duprat e por efeitos sonoros peculiares, logo denuncia: estamos diante de algo sem precedentes na história da música brasileira.

Os Mutantes são um exemplo gritante de que o complexo de vira-lata é absurdo, mas, ainda assim, sua notoriedade é muito maior lá fora do que aqui. Apreciada por gente como o finado Kurt Cobain e Sean Ono Lennon, filho de John Lennon, a banda virou o status quo da MPB às avessas no final dos anos 60 com sua mistura vanguardista entre os ritmos brasileiros e as tendências do exterior. E seu legado permanece atemporal.

Eles apareceram em público pela primeira vez no programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von da TV Record, em 1966. O trio Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee encantou tanto com seu carisma e bom humor que logo foi contratado como atração fixa. Arnaldo e Sérgio, apesar dos sobrenomes diferentes, eram irmãos criados num ambiente regado a muita música: a mãe dos rapazes era uma grande pianista. Tal criação parece ter despertado em ambos um talento nato para a música, e Sérgio teve sua primeira banda aos 16 anos, o Wooden Faces.

Rita Lee Jones Carvalho, filha de imigrante norte-americano e de descendente de italianos, teve aulas de piano clássico e estudou em colégio francês. Mas foi no rock'n'roll de Elvis, Beatles e Rolling Stones e na bossa nova de João Gilberto que ela se encontrou e, em 63, integra seu primeiro grupo: as Teenage Singers. Foi questão de tempo para que os dois projetos se conhecessem e, já com Arnaldo no baixo, estava formado o O'Seis.


Um compacto depois, a banda se desmantelou, restando apenas o trio Arnaldo-Sérgio-Rita. O ponto de partida para o sucesso veio quando os adolescentes conheceram Ronnie Von, o responsável pela escolha do nome: na época, o chamado príncipe da Jovem Guarda estava lendo O império dos mutantes. Eles atuaram no programa do cantor até 1967 e logo em seguida entraram em contato com Gilberto Gil e todos os representantes do Tropicalismo, movimento que visava quebrar os padrões estéticos e musicais da MPB. Gil ficou encantado com o talento dos três (que sequer sabiam ler partituras) e convocou os novatos para acompanhá-lo no III Festival da Record.

A execução de Domingo no parque ao lado de Gil deixou parte da plateia escandalizada por conta da guitarra distorcida de Sérgio, mas chamou a atenção da Polydor e não tardou para Os Mutantes assinarem contrato. Antes de entrar em estúdio, eles gravam um disco com Gilberto Gil e um com Caetano Veloso, o que reforça ainda mais sua associação com a polêmica Tropicália. Mas o álbum solo deixou claro que aquelas caras novas eram muito mais que mera banda de apoio.


O disco de estreia, produzido por Manuel Bareinbein e Rogério Duprat, transpira talento, experimentalismo e inovação por todos os poros. A abertura, citada no início desse texto, já impressiona pelo ritmo inconstante e pela originalidade. A minha menina, a segunda faixa, é um samba rock com Jorge Ben nos violões e é o atestado maior de todo o bom humor do grupo. Imagine-se ouvindo isso em tempos onde ou se era um intelectual apreciador da MPB formal ou se era um adolescente ouvinte da Jovem Guarda.

A característica mais notável de "Os Mutantes" é a tamanha versatilidade de três instrumentistas que não chegavam aos 16 anos. Eles se arriscam a desconstruir o baião (Adeus, Maria Fulô), homenageiam os standards do jazz (Senhor F), partem em viagens etéreas (O relógio e Le premier bonheur du jour) e se aproximam dos Beatles com muita personalidade (Trem fantasma). Tudo isso com tanta simplicidade que parece que não passam de três amigos brincando de fazer música na garagem de casa.

Outros momentos notáveis são Baby, composta por Caetano, a clássica Bat macumba, da dupla Caetano/Gil, e o encerramento instrumental Ave Gengis Khan. Nessas passagens, aliás, o estilo de Sérgio é um destaque inevitável: sua guitarra rascante fazendo o papel do violão, junto com o teclado e o baixo de seu irmão, é algo simplesmente incendiário. A competência de Arnaldo ficaria muito mais latente nos lançamentos posteriores dos Mutantes, mas aqui ele já se mostra muitíssimo eficiente. E Rita não fica atrás, sendo uma boa intérprete e uma flautista e tanto.
Depois do primeiro álbum, Os Mutantes não param mais: gravam com Rogério Duprat, participam do "disco-manifesto" "Tropicália ou Panis Et Circenses" e dão as caras em outros tantos festivais de música, sempre impressionando quem quer que fosse, para o bem ou para o mal. Era uma história recheada de genialidade começando, o início da trajetória de um dos grupos essenciais (talvez o mais essencial) do rock e da música brasileira. Não seria exagero dizer que se pode dividir o rock'n'roll brazuca entre pré-Mutantes e pós-Mutantes. Ouça a obra-prima de 1968 e comprove por si mesmo.

Bat macumba ê
Bat macumba ôbá...