Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer...
Esses enigmáticos versos abrem o primeiro álbum dos Mutantes, um dos nomes mais importantes da nossa música. O ar psicodélico e experimental de Panis et circenses, incrementado pelos arranjos de sopro do maestro Rogério Duprat e por efeitos sonoros peculiares, logo denuncia: estamos diante de algo sem precedentes na história da música brasileira.
Os Mutantes são um exemplo gritante de que o complexo de vira-lata é absurdo, mas, ainda assim, sua notoriedade é muito maior lá fora do que aqui. Apreciada por gente como o finado Kurt Cobain e Sean Ono Lennon, filho de John Lennon, a banda virou o status quo da MPB às avessas no final dos anos 60 com sua mistura vanguardista entre os ritmos brasileiros e as tendências do exterior. E seu legado permanece atemporal.
Eles apareceram em público pela primeira vez no programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von da TV Record, em 1966. O trio Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee encantou tanto com seu carisma e bom humor que logo foi contratado como atração fixa. Arnaldo e Sérgio, apesar dos sobrenomes diferentes, eram irmãos criados num ambiente regado a muita música: a mãe dos rapazes era uma grande pianista. Tal criação parece ter despertado em ambos um talento nato para a música, e Sérgio teve sua primeira banda aos 16 anos, o Wooden Faces.
Rita Lee Jones Carvalho, filha de imigrante norte-americano e de descendente de italianos, teve aulas de piano clássico e estudou em colégio francês. Mas foi no rock'n'roll de Elvis, Beatles e Rolling Stones e na bossa nova de João Gilberto que ela se encontrou e, em 63, integra seu primeiro grupo: as Teenage Singers. Foi questão de tempo para que os dois projetos se conhecessem e, já com Arnaldo no baixo, estava formado o O'Seis.
Um compacto depois, a banda se desmantelou, restando apenas o trio Arnaldo-Sérgio-Rita. O ponto de partida para o sucesso veio quando os adolescentes conheceram Ronnie Von, o responsável pela escolha do nome: na época, o chamado príncipe da Jovem Guarda estava lendo O império dos mutantes. Eles atuaram no programa do cantor até 1967 e logo em seguida entraram em contato com Gilberto Gil e todos os representantes do Tropicalismo, movimento que visava quebrar os padrões estéticos e musicais da MPB. Gil ficou encantado com o talento dos três (que sequer sabiam ler partituras) e convocou os novatos para acompanhá-lo no III Festival da Record.
A execução de Domingo no parque ao lado de Gil deixou parte da plateia escandalizada por conta da guitarra distorcida de Sérgio, mas chamou a atenção da Polydor e não tardou para Os Mutantes assinarem contrato. Antes de entrar em estúdio, eles gravam um disco com Gilberto Gil e um com Caetano Veloso, o que reforça ainda mais sua associação com a polêmica Tropicália. Mas o álbum solo deixou claro que aquelas caras novas eram muito mais que mera banda de apoio.
O disco de estreia, produzido por Manuel Bareinbein e Rogério Duprat, transpira talento, experimentalismo e inovação por todos os poros. A abertura, citada no início desse texto, já impressiona pelo ritmo inconstante e pela originalidade. A minha menina, a segunda faixa, é um samba rock com Jorge Ben nos violões e é o atestado maior de todo o bom humor do grupo. Imagine-se ouvindo isso em tempos onde ou se era um intelectual apreciador da MPB formal ou se era um adolescente ouvinte da Jovem Guarda.
A característica mais notável de "Os Mutantes" é a tamanha versatilidade de três instrumentistas que não chegavam aos 16 anos. Eles se arriscam a desconstruir o baião (Adeus, Maria Fulô), homenageiam os standards do jazz (Senhor F), partem em viagens etéreas (O relógio e Le premier bonheur du jour) e se aproximam dos Beatles com muita personalidade (Trem fantasma). Tudo isso com tanta simplicidade que parece que não passam de três amigos brincando de fazer música na garagem de casa.
Outros momentos notáveis são Baby, composta por Caetano, a clássica Bat macumba, da dupla Caetano/Gil, e o encerramento instrumental Ave Gengis Khan. Nessas passagens, aliás, o estilo de Sérgio é um destaque inevitável: sua guitarra rascante fazendo o papel do violão, junto com o teclado e o baixo de seu irmão, é algo simplesmente incendiário. A competência de Arnaldo ficaria muito mais latente nos lançamentos posteriores dos Mutantes, mas aqui ele já se mostra muitíssimo eficiente. E Rita não fica atrás, sendo uma boa intérprete e uma flautista e tanto.
Depois do primeiro álbum, Os Mutantes não param mais: gravam com Rogério Duprat, participam do "disco-manifesto" "Tropicália ou Panis Et Circenses" e dão as caras em outros tantos festivais de música, sempre impressionando quem quer que fosse, para o bem ou para o mal. Era uma história recheada de genialidade começando, o início da trajetória de um dos grupos essenciais (talvez o mais essencial) do rock e da música brasileira. Não seria exagero dizer que se pode dividir o rock'n'roll brazuca entre pré-Mutantes e pós-Mutantes. Ouça a obra-prima de 1968 e comprove por si mesmo.
Bat macumba ê
Bat macumba ôbá...
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